13.12.25

Do mar e das mulheres da nossa vida

Estava a sonhar com ladrões. Imaginei que amanhã o dia seria meu. Só meu. Todo meu. Não vai ser. Terei de ir verificar o nível das baterias. Que sorte! Um passeio em dinghy... Separarmo-nos do mar é pior do que separamo-nos da mulher da nossa vida. Ela só fala. 

Balanços

Tomar um duche grosso em terra é como tomar um sóbrio no mar. Não vale sequer a pena perguntar porquê.

Eleni, Hildegarde e o tempo

Passo da Hildegarde para a Eleni Karaindrou por razões que têm a ver com a memória e a má consciência. Andam muitas vezs juntas, essas duas cabras. Não sei. Não há rum que chegue para me dar uma resposta. Só o tempo, se eu viver tempo que chegue.

Equivalências, sortes

Domingo vou para Road Harbour. É um dos sítios das Caraíbas que mais detesto. É-me difícil perceber porque estou tão contente. Difícil?

Não é o destino que conta, estúpido. De qualquer maneira não vais sequer ter tempo de ver aonde estás. É sair de bordo, ir buscar as injecções e os sapatos de que te esqueceste e correr para o aeroporto para voltar para o mar. O mundo devia ser feito de mar. Ou de amor, é quase a mesma coisa.

Se tiveres muita sorte, vais ao Purser's beber um rum. Muita sorte.

Diário de Bordos - Le Marin, Martinique, DOM-TOM França, 12-12-2025

São nove da noite. A esta hora estou ou a dormir ou a pensar no que fazer para dormir. Agora não. Penso que tenho de dedicar este post à B. A. P. e à L. C. B. (por que raio de carga de água temos tantos nomes, nós portugueses?) e é por aqui que começo, Bárbara, Luíza. Ou começo antes? Cheguei a casa e fiz um café, uma coisa do Congo que comprei em Fort-de-France e que é bastante bom, ma parole. E depois pus a Hildegarde von Bingen não sei cantada por quem, mas pouco importa. E fiz um ti'punch com um rum da Habitation La Favorite e despi-me, inundei a casa de anti-mosquitos e penso que tenho de tomar um duche antes de ir para a cama mas depois pergunto-me «quem é que quer palavras lavadas?» e continuo a escrever e quero que o duche se lixe. As palavras querem-se feias, ninguém gosta de palavras bem penteadinhas, como meninos que saem de casa para a escola. As palavras querem-se à vinda, joelhos sujos e camisas rasgadas.

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E são essas as palavras que se me acumulam, como se a porta da escola estivesse fechada e os putos todos quisessem sair e lutassem para ser os primeiros.

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Cheguei ao Marin faz hoje dez dias. Talvez onze. (Onze, fui ver.) À chegada tive o barco cheio de bombeiros, primeiro. Era preciso levar a Nigist para o hospital. Levaram-na. Depois chegaram os polícias. Era "preciso" levar a Mihret, o Amanuel e o pequeno Nehemiah para o posto do aeroporto («posto» é um eufemismo para prisão, se por acaso). Na sua grande generosidade, o chefe do dito concedeu um visa temporário à Nigist e ao filho, a fim de conseguirem um visa para St. Lucia. Ninguém imagina a violência que é para mim estas pessoas que precisam de um visa para ir à casa de banho. O homem é por natureza livre e qualquer entrave a essa liberdade - seja ela uma fronteira - é uma violação.

O resto da semana foi passado entre o «posto», sito no aeroporto, o hospital, o consulado de St. Lucia em Fort-de-France. Isto estando no Marin, a trinta e qualquer coisa quilómetros e duas horas de carro. Preciso da ajuda da Hildegarde que agora canta pela voz de alguém: consegui. Consegui tudo: o visa para a Nigist e para o seu filho, trocar as datas dos bilhetes do ferry, levar comida e roupa aos «prisioneiros», convencer o chefe da polícia que aquilo era boa gente, acompanhá-los ao ferry, consegui os papéis do hospital. Consegui. Puta que foda a puta da vida. Consegui. Foram horas ao volante, horas a falar com funcionários para quem esta história cheirava a uma versão mal cozinhada de ET, horas sem dormir, horas a ouvir «sir...» mas foda-se, consegui. A prova está agora a Hildegarde a fornecer-me-la. Halleluijah!!! 

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Depois, ao contrário do que queria, não consegui repouso. A culpa não é minha, é do meu Pai, da porra dos genes, não sei de quê. Mas não me queixo: amanhã tenho o dia para mim. Só tenho de ir buscar a roupa à Roseline - uma senhora que faz milagres, se por acaso alguém precisar dos serviços de uma lavandaria no Marin - antes das sete  e meia da tarde. Chateia-me porque queria passar a soirée em Fort-de-France mas paciência. Há pior. Vou almoçar de novo no Impératrice a menos que o Pain de Sucre esteja aberto, o que é pouco provável. Vou passear de carro sem me preocupar com os excessos de velocidade.

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Não percebo uma coisa: se eu vou depressa demais (na opinião deles) e tenho de pagar uma multa, porque é que quando vou devagar demais (ditto) eles não me reembolsam o dinheiro da multa? É como nos aeroportos: um gajo tem quilos a mais e pumba! mas quando tem quilos a menos nada, zero, nix. Puta que pariu as assimetrias.

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De maneira estou em casa a beber ti'punch e a ouvoir Hildegarde von Bingen, mistura que poderia parecer surpreendente não fora a porra dos dez ou onze dias que acabo de passar.

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O pior não são os dias. É eu gostar deles.

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Não sei se alguma vez pensaram na problemática da idade. Eu penso, às vezes. Noventa e nove por centos delas não é um «problema».Um por cento é. Agradeço muito a estes um por cento, quando acontecem. Também agradeço à senhora, sentada na mesa ao lado da minha e acompanhada que me provocou tão ternos sentimentos.

10.12.25

Diário de Bordos - Le Marin, Martinique, DOM-TOM França, 09-12-2025

Um gajo pensa em tudo aquilo por que acaba de passar e começa a elaborar uma estrutura para a narrativa. De repente cai-lhe um raio em cima. Morreu a C. P-C.  O gajo sabe que não é uma grande surpresa mas sabe também que é injusta, surpresa ou não. Há mortes que não são uma filha da putice? Há. Esta não é uma delas. A cabrona leva os melhores de entre nós até morrermos e só aí reequilibra a média. Puta que a pariu, à morte.

Foi ela também que ceifou a minha Avó Filipa antes de eu a poder levar a comer um linguado ao Leão D'Ouro. Não é só a morte que é filha da puta. 

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Tive de voltar ao hospital para pedir um papel sobre o internamento da Nigist. «You are a miracle worker», diz-me a Brooke. Não sou nada. Sou um worker e já é muito.

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Tenho rum a bordo (branco), hoje comprei café decente - vem do Congo - e chocolate negro. O motor carrega as baterias. É um mistério para mim, isto de os armadores não instalarem painéis solares.

Tudo é um mistério para mim, na verdade. Até eu. Até a raiva que agora sinto, como se não fosse mais do que de vida. Puta que a pariu. Deixei de gostar de chocolate negro.

8.12.25

Diário de Bordos - Le Marin, Martinique, DOM-TOM França, 07-12-2025

Tenho direito a dois finalmentes: a familia etíope está reunida em St. Lucia e eu estou sozinho a bordo. O segundo não vai durar muito tempo: amanhã às nove já tenho de ir buscar a rapariga da limpeza. E depois terei muito trabalho com os barcos. Não terei tempo para parar dois dias, alugar um quarto no norte da ilha e dedicar os dias a dormir, beber rum e escrever (ao mesmo tempo, claro). Mas bom, sejamos optimistas. Com sorte, amanhã conseguirei ir a Ses Salines. Não é o norte da ilha, é aqui ao lado, mas como toda a gente sabe o que se tem é melhor do que o que se quer ter.

Ou seja: amanhã de manhã há trabalho. À tarde também, eu darei parte de doente e irei à praia. Tão certo como chamar-me tio Patinhas.

A máquina principal está a trabalhar para carregar baterias. O grupo não funciona. Já no L. do M. é a genny quem se esforça. Deixei-a sozinha, coitada. Devem contar-se pelos dedos de uma metade de mão as vezes que eu deixei uma máquina, seja ela principal ou auxiliar, a trabalhar sem eu estar a bordo. Mas pronto, alguma vez será a primeira. Ou segunda, vá lá saber-se. Amanhã vou dormir para o L. e o grupo lá vai trabalhar para alimentar o ar condicionado,  tão glutão. E eu a dormir. 


PS 08-12-2025 - Hoje não há Ses Salines para ninguém. Está de chuva.

7.12.25

Diário de Bordos - Fort-de-France, Martinique, DOM-TOM França, 07-12-2025

Venho deixar a Nigist ao terminal de ferries. No caminho, a senhora desfaz-se em agradecimentos e a certa altura oferece-me um pequeno souvenir. Diz-me que o seu filho gosta muito de animais mas que ela me vai oferecer este para que eu me lembre deles. É uma tartaruga. Não há maneira possível no mundo para ela saber que a tartaruga é o meu totem. Estou comovido para além do que é descriptível.

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Isto dito, eu sei que fiz muito por eles, não vale a pena entrar em falsas modéstias. Mas tão pouco é necessário exagerar: fiz aquilo que penso que devia fazer. Aquilo que a minha humanidade pensa que deve ser feito. «Sou humano e nada do que é humano me é estranho». Brooke (a «mãe adoptiva» deles, senhora de religião), pensa que não. Pensa que eu sou um instrumento de Deus que lhes apareceu. (Nigist pensa a mesma coisa. Queria ter uma conversa teológica comigo, mas eu cortei. Deus não é para aqui chamado.) Brooke é elaborada. Diz que há muitos humanos que fazem mal uns aos outros. É verdade. A humanidade é feita de Bem e do Mal. Assim mesmo, com maiúsculas. Brooke diz «Sim, mas tu és do bem. É uma escolha e tu escolheste-a.» Claro que sim. Escolhi a decência, termo que prefiro a Bem. Uma das provas de que Deus não é para aqui chamado é que é uma luta permanente. A decência não é uma pomba que nos pousa na cabeça - e às vezes, quando pousa caga-nos em cima. 

6.12.25

Diário de Bordos - Fort-de-France, Martinique, DOM-TOM França, 06-12-2025

Não sei por onde começar, portanto começo pelo fim. É quase uma da manhã. Estou no Marin, a esperar que o Diego e o Fernando acabem de preparar um jantar, a olhar para a marina - não há um pingo de vento e as luzes da metade superior da paisagem reflectem-se na àgua, como se o universo fosse simétrico, coisa que não é de todo. À chegada tínhamos os bombeiros, que levaram a Nigist para o hospital. A seguir, o Kokoarum já tinha a cozinha fechada.  Depois,  apareceram oito PAF (o equivalente

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06-12-2025

Adormeci com o telefone na mão. Ainda bem: o fim estava muito longe. Ainda não chegou, sequer, se bem o último acto esteja a meio. Estou no terminal de ferries de Fort-de-France para mudar os bilhetes da Nigist e do Nehemiah de terça-feira para amanhã. 

Como dizem futebolistas e pornógrafos, passe o pleonasmo, só conta quando está lá dentro. Neste caso, quando estiverem primeiro dentro do ferry que os levará a St. Lucia e depois dentro da casa que ali alugaram e aonde já estão a Mihret e o Amanuel. Só então poderei respirar fundo e encomendar a piscina de rum em que me quero diluir, lenta e metodicamente.

Só depois, também, poderei contar a história destas duas últimas semanas. 

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A distância entre Le Marin e Fort-de-France é de trinta e três quilómetros. Em condições normais o trajecto faz-se em duas horas, mais ou menos meia hora. Quando não há engarrafamento, leva-se três quartos de hora, uma hora. Às vezes acontece. É um trajecto apaixonante. Os limites de velocidade mudam de quinhentos em quinhentos metros. Setenta, cinquenta, oitenta, noventa, setenta, cinquenta o mais das vezes sem uma razão perceptível. Acoplado a meia dúzia de radares, este método faz milagres. Não para a segurança, claro, mas para as finanças das comunes que a estrada atravessa (ou quem quer que seja que recebe o guito das multas).

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O bilhete está mudado. Embarcam amanhã. 


(Cont.)

1.12.25

Diário de Bordos - No mar, entre o Mindelo e St. Lucia, 30-11-2025 / II

A situação da senhora complicou-se bastante durante o dia e acabei por ter de lhe dar um anti-emético. Instruções do Cross - Antilles Guyane que tive de chamar, Allahu Aqbar, continuam a fazer um trabalho sublime. Injectável, claro, é o único que tenho a bordo. Depois da injecção dada, N. diz-me "you did a great job". O cumprimento encheu-me mais de alívio do que de orgulho. Se não é a primeira injecção que dou na vida é a segunda e disto tenho sérias dúvidas. Valeu-me lembrar-me ainda das aulas de medicina e primeiros socorros da então ENIDH (hoje acrescentaram-lhe um S, para fazer daquilo uma escola superior). A senhora dorme, sob a supervisão da irmã e do cunhado, a quem dei instruções para a acordarem uma vez por hora e trocar com ela algumas palavras para avaliar a sua reactividade.

Agora há que gerir o tema do médico à chegada. Tudo menos que me ponham de quarentena não sei quantos dias ou semanas em Rodney Bay. É pouco provável mas não é impossível. 

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São momentos como este, ou quando estamos num squall ou numa tempestade, ou quando temos de nos encavalitar no galope de um mastro a vinte metros de altura com força seis, ou quando temos de resolver um problema qualquer no mar que justificam o salário que ganhamos. 

Os outros, os dias a saltar de fundeadouro para restaurante de luxo pago pelos clientes também; só que a razão é menos aparente: isto é tudo óptimo até alguma coisa correr mal. Por isso me irrito quando aceito um trabalho com um salário baixo, como é este, que aceitei por causa do Panamá e agora estou em negociações com a empresa para ficar por estas bandas. Vamos ver.

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Como, de resto, só amanhã veremos se geri isto tudo correctamente ou não. O mundo da navegação é um mundo lento, como se ao espaço da relatividade, para definir o tempo, tivesse de se juntar o mar. Há sempre um amanhã e até ele chegar o hoje não se percebe bem. Só no fim da regata ou no fim da viagem saberás se a tua opção de hoje foi a correcta. Amanhã. 

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Amanhã? Amanhã chegamos a Rodney Bay. Depois? Logo se vê. Vamos para o Marin, isso é de certeza. A questão é saber quando. O que vai depender dos senhores da imigração em St. Lucia. Cujo humor vai depender de uma série de outras coisas. Ou seja: prever o futuro nesta actividade é como ir a um desses charlatães que prevêem o futiuro numa bola de cristal. Partida.

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PS - isto hoje vai para o ar quase sem correção. O dia começou às três da manhã e são agora onze da noite. Se ninguém me acordar antes, às seis estarei de novo a pé. E ainda há quem pense que ganhamos muito.

30.11.25

Diário de Bordos - No mar, entre o Mindelo e St. Lucia, 30-11-2025

Uma das senhoras etíopes está doente há uns dias. Como não se queixava muito pensei que era enjoo, perguntei-lhe se queria comrimidos para o dito, respondeu que não e pronto, a coisa ficou por aí. Hoje ia entrar de quarto às três da manhã e vejo-a sair da casa de banho num estado de meter medo a um médico legista. Entretanto o cunhado e a irmã também acordaram e ee volta-se para mim e diz: talvez seja preciso chamar um médico quando chegarmos. Estávamos então a quase trezentas milhas de St. Lucia e a minha vontade de esperar dia e meio ou mais não era, por assim dizer, muita. Perguntei-lhe se os comprimidos que lhe tinha dado na véspera tinham tido algum efeito. O primeiro Buscopan sim, o segundo não - ou melhor, piorou. A senhora não tem febre, fala quase ininteligivelmente, transpirava abundantemente e eu começo a ver a vida andar a ré a toda a força. Perguntei-lhes se conheciam algum médico etíope que se pudesse chamar por Whatsapp, a resposta foi sim. Pouco depois liguei a um amigo americano que vive na Suíça e confirmou a terapia proposta pela médica etíope: água com açúcar e um bocadinho de sal. Provavelmente a senhora está com uma gastroenterite e, acrescentou, isso «é muito contagioso». 

Espero que não. A sê-lo, já a teríamos todos apanhado. De maneira é isto: motorsailing para Rodney Bay Marina. ETA amanhã às três ou quatro da tarde. Entretanto a senhora está mais calma, dorme no salão, vai bebendo regularmente água com açúcar e um bocadinho de sal e eu prometo que nunca mais vou dizer que não a um Starlink a bordo.

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Os preconceitos ou vêm comprazo de validade ou resvalam para a estupidez. Digo eu, que sou bastante ambivalente com as minhas ideias preconcebidas: agarro-me a elas com unhas e dentes e troco-as por outras mal se me apresenta uma razão suficientemente forte para justificar a troca. Hoje, foi a vez do «Não!» ao Starlink. Verdade seja dita: já há algum tempo andava a pensar nisso. Afinal, sempre tivemos meios de comunicação a bordo, desde as bandeiras do Código Internacional de Sinais até aos rádios de ondas curtas. O VHF mantém-se, mas aqui não serviria de muito.  Seja como for: vê-los a trocar mensagens com a médica etíope e poder falar com o D. que está em Lausanne compensam largamente o que me aborrece estar tão dependente do FB mesmo no mar. A culpa é minha e não do Elon Musk, a quem estou infinitamente grato.

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Outra lição: refrescar os meus conhecimentos de primeiros socorros. Não me passou pela cabeça que aquilo poderia ser uma gastroenterite - é, quase de certeza - e estava completamente às aranhas. Tive alguns bons reflexos - a primeira coisa com a qual me preocupei foi a desidratação, por exemplo -, dei-lhe Buscopan (infelizmente a senhora é sensível aos efeitos secundários e tive de parar) mas aborrece-me ter feito isso um pouco por reflexo, às apalpadelas (salvo seja, claro).

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Mais uma lição: a gestão criteriosa que fiz do combustível permite-me ir agora a quase duas mil - e quando passar o que tenho nos jerrycans para os tanques espero poder subir um bocadinho. 

29.11.25

Diário de Bordos - No mar, entre o Mindelo e St. Lucia, 28-11-2025

Dormi como há muito tempo não dormia e quando acordei fui lá fora ver aonde param as modas. A noite está linda, enluarada, sem sinais de squalls, com o vento pouco abaixo dos vinte,  a velocidade entre os seis e os oito, o bote no rumo, as baterias em ordem - vou precisar de as carregar mas só daqui a um bocado, quando já estiver de quarto. Até lá, deixa ir que vai bem.

Comecei por pensar "que merda de dia a acabar tão bem" e apercebi-me logo de que estava enganado. O dia foi porreiro: conseguimos evitar todos os aguaceiros (não que tivéssemos tido muito mérito nisso...), andámos bem, fizemos meia dúzia de horas de motor e fizemos jus ao que pensei a cada um que nos passava ao lado: estamos na avenida da boa-sorte.

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A continuar assim, não toco nos duzentos e sessenta litros* de gasóleo que ainda tenho nos jerrycans, provando uma vez mais a minha tese segundo a qual "navega-se com o combustível dos tanques".

Isto dito, vem-me à memória a travessia deste Maio, cuja quantidade absurda de bidons me permitiu cortar quase a direito até à Horta e arrumo a tese debaixo do tapete com um acrescento: "quando se pode".

(* - O D. usou vinte litros porque precisou de substituir o balde que se perdeu e improvisou com um jerrycan cortado so meio.)

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De modo daqui a três quartos de hora entro de quarto e inauguro o antepenúltimo dia da viagem. Cujo fim é vem vindo: estou cansado.

E preciso de uma cerveja. Lembram-se: "uma cerveja, um duche e uma mulher, por esta ordem, se faz favor"? Dos dois últimos não sinto muito a falta, graças ao dessalinizador e à idade, que tanta serenidade me trouxe. Mas de uma cerveja a sério... ah! Daria por ela reino e meio. Estas cervejas sem álcool são intragáveis e ainda fazem pior. Dão vontade do produto real.

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Esta história da ausência de cerveja comprovou outra coisa que já sabia: a minha ausência de inveja é estrutural. Não me incomoda nada ver a P. e o J. beberem uma lata ou duas, às refeições e fora delas. Não estão abrangidos pela lei seca - "a menos que exagerem", o que não foi o caso - e embarcaram uma quantidade correcta. Creio que o stock lhes acabou hoje.

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Afinal vou passar no Marin mais tempo do que pensava. Deo gratias.

28.11.25

Diário de Bordos, aonde se fala de squalls e outras coisas, 27-11-2025 / II

A navegação nas Caraíbas sofre de duas pragas, desculpem-me a repetição,  já aqui falei disto uma vez há cerca de duzentos anos. Uma é a burocracia,  da qual tive recentemente um cheirinho, mesmo em alto mar, modernité oblige. A outra são os squalls. Em francês: grains. Em espanhol: chubasco ou chaparrón. Em português: creio que a tradução correcta é aguaceiro mas não tenho a certeza. O Deepl e o Google dão-me tempestade, borrasca. Estão errados. Paciência. Um squall é uma mini-tempestade súbita, com um aumento brusco da força e direcção do vento, acompanhada por chuva violenta. Em linguagem simples e corriqueira, um squall é uma merda. Em primeiro lugar porque tem um movimento próprio. O vento que gera pode chegar a fazer noventa graus com o vento sinóptico - o que dá frequentemente origem a cambadelas desastrosas. Em segundo lugar porque é imprevisível: um gajo pensa que ele vai para sul e o sacana muda de direcção com a agilidade de uma gazela perseguida por um leão. Às vezes alinham-se uns a seguir aos outros e fazem uma parede de trovoada, chuva, relâmpagos e raios que pode durar horas ou dias - já me aconteceu por duas vezes, uma entre Grenada e a Martinique  - passei o dia todo com uma dessas paredes a quatro ou cinco milhas por estibordo e só me caíram um ou dois em cima ao fim da tarde, quando ia a entrar em Bequia para descansar, obrigado à regulação francesa que não pemite navegação em solitário mais de uma certa quantidade de horas, não me lembro de quantas. (Isto não se aplica ãs regatas em solitário,  obviamente nem aos trajectos privados). Outra vez foi entre Providência e St. Martin. Três dias com uma assustadora muralha de raios, trovões, squalls e relâmpagos bem mais longe mas muito piores. Felizmente não apanhei nenhum. 

Hoje, agora, um "aguaceiro" (aspas porque duvido) acaba de me passar uma rasia. Só que não consigo perceber se vêm mais ou não. A norte o horizonte está bastante escuro e fechado mas não vejo mais sinais de badanal. Pela proa está assim assim (e muito bonito, com a Lua em Crescente, horizontal, a iluminar desigualmente as nuvens, espalhadas por várias altitudes e o mar, esse sim, uma estrada prateada muito bem delineada).

Ou seja: uma noite de standby, que é a expressão inglesa para uma noite de merdaSem o amantilho não posso rizar - poder posso, mas só depois do fim do último caso - de maneira enrolei a genoa toda, sempre me dá mais margem de manobra e aqui vou, a olhar alternadamente para o céu, para o horizonte e para o telefone aonde escrevo, vestido com o casaco Henri Lloyd que começa a perder a impermeabilidade, tal como as calças que não tarda vão à vida (ou seja, para o lixo, raio de expressão), substituidas por umas Gill compradas em Gibraltar e que ainda não precisei de pôr porque o squall do outro dia veio repentinamente demais e não me deu tempo para as estrear. 

O céu a norte começa a limpar e vou desenrolar a genoa. 

Não vou nada. Vou cantar laudas por ter escapado a um e olhar para a beleza do céu, com as nuvens caoticamente delineadas pela meia Lua que não tarda mais de três quartos de hora se põe e vai deixar a noite sem pingo de luz.

27.11.25

Diário de Bordos - No mar, entre o Mindelo e St. Lucia, 27-11-2025

Espero a chegada do sono e a das palavras. Vêm frequentemente juntos. Já de vento não vale a pena esperar muito mais: entre quinze e dezoito nós, a fazer um rumo bastante correcto e com tudo a funcionar bem; tudo sendo velas, motores, dessalinizadora e grupo electrogéneo. Chegamos segunda-feira. Só não sei a que horas.

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Nestes barcos, o distinguo entre tripulação e passageiros é fluido. Intuitivamente, sei que somos dois tripulantes - o D. e eu - e seis passageiros- a P., o J. e os quatro etíopes. Destes, três não fazem quartos (o outro tem dois anos) mas tratam do interior. Lavam pratos e passam o aspirador. O D. faz tudo - cozinha (excelentemente), faz quartos e trata de tudo a bordo. Falta-lhe um pouco de qualquer coisa mas compensa bem com a vontade de aprender e a vontade de fazer.  Tem um dente de prata (ou prateado) que lhe dá um aspecto horrível quando abre a boca mas como é voluntarioso e eficaz a coisa passa.

Eu faço o resto, que parece pouco e é muito. Não me posso queixar, pelo menos até agora. Vou batendo na madeira para que isto continue assim. Temos de fazer quase quatrocentos litros de água por dia, carregar baterias meia dúzia de horas - um parque de novecentos a/h de lítio com alternadores e carregador de origem não vai longe - e navegar no inevitável caos que foi a arrumação das provisões: compras feitas pelo escritório, enganos do supermercado nas entregas, confusão com o número de pessoas a bordo de cada barco (somos quatro, três catas e um monocasco). O resultado é que as coisas não foram arrumadas. Foram postas ao calhas e aonde havia lugar. Além disso, temos uma quantidade infinita de algumas coisas e outras estão a acabar.

O meu inabalável optimismo resume tudo bastante bem: tens comida, água, combustível, vento, motores, velas e uma excelente tripulação. Que queres mais? Nada, claro, excepto chegar depressa para dar um abraço ao meu filho T. e beber uma cerveja.

Com álcool, que as sem são pecado mortal.

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PS - não chega bem a quatrocentos litros por dia mas anda lá perto. É aterrador. Cinquenta litros por dia e por pessoa!

Há muito que desisti de formar marinheiros. (E beneficio disso: um duche por dia, loiça lavada com água doce na cozinha ou na máquina de lavar (!), lavagens de roupa quotidianas (eles. Eu vou na segunda e é um pau por uma pedra. Há que manter vivas as tradições familiares). Claro que me irrita passar o dia a ouvir o grupo ou os motores - uso-os alternadamente para carregar as baterias, por razões longas demais para explicar aqui. 

Além disso, tenho um duche à espera.